28 de ago. de 2010

Sobre a (in)definição política

Do processo eleitoral desse ano, ficam marcados (sei que ainda não terminou) dois pontos básicos: transferência de prestígio e eleitores existem e política (enquanto problematização da realidade, discussão sobre acesso ao poder) não existe.

É o que se revela (são obviedades, claro) em meio a tanta anti propaganda eleitoral e ausência de proposições.

Já decidiu seu voto?

20 de ago. de 2010

Memória política

Transcrevo abaixo parte da entrevista disponibilizada no site do Le Monde Diplomatique Brasil:

Internet e memória política

Uma das grandes vantagens da internet é sua interatividade: ela pode ser usada como um grande banco de dados aberto para todos os usuários. Mas em que medida os brasileiros têm explorado as possibilidades desse mundo virtual quando se trata de participação política? E os políticos, como eles têm usado as redes sociais?

por Mariana Fonseca

Conversamos sobre esses e outros temas com o jornalista Rodrigo Savazoni, diretor da Fli Multimídia, que integra a Casa da Cultura Digital. Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, Savazoni apontou que o jovem brasileiro está mais politizado e criticou a maioria dos nossos políticos, que ainda não usa com plenitude as redes sociais: eles optariam por um sistema de broadcasting, ou seja, “eu falo, você escuta”, e não pelas discussões mais horizontais que a rede propicia.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL - A internet é uma ferramenta que pode reforçar a memória do eleitor?

RODRIGO SAVAZONI - Cada vez mais temos aplicações desenvolvidas que usam a internet naquilo que ela tem de diferencial, que é ser um amplo banco de dados acessível para todo usuário. Nesse sentido, é possível encontrar informação sobre políticos, governantes que almejem continuidade em um cargo público etc. Mas não é algo intrínseco da internet, isso faz parte de uma noção de uso, ou seja, de uma percepção de como ela pode servir a propósitos culturais, políticos e cidadãos, auxiliando assim a escolha dos eleitores.

Não é diferente do papel que a imprensa e a mídia de massa puderam desempenhar. O que varia é o fato de promover o acesso de acordo com a demanda do usuário, o que antes os outros meios não conseguiam proporcionar. Um exemplo é o site desenvolvido por jornalistas do St. Peterburg Times, o Politic Fact, projeto que ganhou, inclusive, o prêmio Pulitizer. Eles criaram, durante as eleições norte-americanas, uma espécie de “verdadômetro”, avaliando o que os candidatos prometiam, a partir de uma pesquisa e composição de banco de dados. Isso tem até sido copiado no Brasil.

DIPLOMATIQUE - Quais aplicativos brasileiros você destacaria nesse ano eleitoral?

SAVAZONI - Não estou acompanhando tanto as eleições atuais como acompanhei as anteriores, mas vou me arriscar citar alguns bons trabalhos. O que houve foi uma explosão desses aplicativos e iniciativas em várias frentes, numa passagem clara de que a internet começa a ter um peso maior nas eleições hoje do que teve anteriormente. Apesar não ser central, já que a influência da televisão ainda é enorme, temos um deslocamento razoável, que demonstra o papel que ela pode desempenhar.

Eu destacaria alguns trabalhos desenvolvidos pela sociedade civil, como a repercussão da lei Ficha Limpa, que ganhou amplitude com o projeto Excelências, da Transparência Brasil. Outro interessante é o Transparência Hack Day, uma lista de discussões e ações promovidas pela Esfera. Mais um seria o Eleitor 2010, da Globol Voices, entre outros tantos (leia box ao fim da entrevista).

Essas são iniciativas que partem de grupos da sociedade civil operando seu poder de mídia, sua possibilidade de se dispor de um meio de comunicação poderoso, a internet, sem precisar passar por uma mídia de massa tradicional. Claro, que se uma emissora de TV como a Globo decide fazer algo desse tipo, o impacto ainda é maior.

DIPLOMATIQUE - Existe uma sensação de que as pessoas estão podendo discutir mais, participar mais pela internet. Isso é real? Os jovens ligados à internet estão mais politizados?

SAVAZONI - Assistimos há alguns anos a um processo de politização crescente da sociedade brasileira. Alguns dizem que não, mas para mim é um discurso conservador de gerações mais velhas, falando das mudanças no perfil de participação e atuação. Mas, se analisarmos o volume de participação e as diferenças de foco da juventude de forma ampla, observamos um aprofundamento da complexidade da participação política no país e a internet acaba sendo um grande catalisador para esse tipo de ação que, muitas vezes, está atomizada devido à fragilidade das instituições de intermediação. Essas instituições, -- escolas, partidos, universidades e imprensa tradicional – que foram muito fortes no século XX, estão enfraquecidas. Continuam tendo poder, mas com menos impacto nos cidadãos que nasceram com a rede. Surgiram novos arranjos de participação. Se isso vai gerar efeitos na prática, ainda temos que observar, mas já vemos uma ânsia de participação que a rede potencializa. O Facebook e o Twitter são exemplos disso.

DIPLOMATIQUE – E como foi a apropriação por parte dos políticos dessas ferramentas? Falou-se muito do Barack Obama. Qual foi a grande descoberta dele?

SAVAZONI - A internet é uma ferramenta poderosa, fortalece as condições de conversação, permite diálogos horizontais e o surgimento de coisas que poderiam ficar escondidas por conta da organização do sistema midiático. No caso do Obama, ele veio de oito anos de governo George W. Bush e soube explorar essa ânsia de mudança no país, principalmente no contexto das prévias com a Hillary Clinton. Ele precisou usar das novas tecnologias para criar condições de interlocução igual para ambos, já que nos meios tradicionais não conseguiria. A campanha do Al Gore, feita oito anos antes, também havia usado bastante a internet, que na época já tinha uma difusão nos Estados Unidos igual à que temos atualmente no Brasil. Ele explorou-a tão bem quanto Obama. O diferencial é que houve um amadurecimento social do uso dessas ferramentas e um acordo político para superar os anos Bush. É claro que a internet teve um papel importante, mas você não gera um novo Obama com as ferramentas, existe um contexto político que produz isso.

DIPLOMATIQUE – No recente debate dos candidatos à presidência, o Plínio de Arruda Sampaio (PSOL), por exemplo, falou do uso Twitter. Como os políticos brasileiros têm usado as redes sociais?

SAVAZONI - Essa é a primeira eleição no Brasil que ocorre com base em uma lei que permite o uso das novas tecnologias. Nas eleições anteriores, as mídias sociais estavam vedadas por conta de um marco legal completamente anacrônico. O Brasil superou isso e permitiu que a internet fosseusada em sua plenitude pelos candidatos, inclusive com doações online, que foram importantes no contexto americano e que vão influenciar o cenário brasileiro. Mas eu diria que até agora nenhum candidato se comprometeu de forma significativa com a rede que mereça ser destacado. Não é o caso da Dilma, Serra, Marina e até do Plínio, que recentemente descobriu esse espaço como uma forma de vazar o cerco midiático que ele sofre por ser um candidato que vocaliza certos valores que parecem não interessar às mídias eletrônicas de massa, especificamente a televisão.

O uso das redes sociais é difundido: todos os candidatos têm Twitter, Facebok, Orkut etc. O Mercadante aqui em São Paulo até criou uma rede social específica, organizando sua campanha por meio de uma rede desenvolvida em software livre etc. Mas ninguém se destacou porque as campanhas aparentemente ainda não decolaram.

DIPLOMATIQUE - É possível discutir política em 140 caracteres (tamanho máximo de textos postados no Twitter)?

SAVOZONI - Quanto maior a candidatura, menos se discute nas redes sociais. Quanto maior a candidatura, mais forte é a opção por usá-las como meio de broadcasting, “eu falo, você escuta”. O que os candidatos não perceberam ainda é que a internet é um arranjo que permite a conversa de muitos para muitos. Mas quando você vai descendo para candidaturas menores, de deputados federais ou estaduais, esse diálogo já ocorre. A proximidade com os eleitores vai deixando a conversa mais qualificada. Característica comum nas redes sociais, ter muitos seguidores isso é visto como sucesso; mas, por outro lado, quando se tem um universo mais controlado, a qualidade das discussões é maior. Essa é uma contradição, um fato que precisa ser observado.

Uma pesquisadora do Rio Grande do Sul, Raquel Recuero, tem uma visão bem técnica e apresenta vários dados interessantes. As pesquisas que ela tem divulgado e o que temos visto demonstram que a qualidade da conversação aumenta na medida em que se tem maior proximidade entre o candidato e seus potenciais eleitores.

DIPLOMATIQUE – Apesar da possibilidade de busca, candidatos com o histórico bastante sujo têm um eleitorado expressivo ou já foram reeleitos. Essa busca chega à maioria da população?

SAVAZONI – Duas coisas importantes. Primeiro a internet hoje já tem uma penetração de 70 milhões de usuários, o que já faz diferença no país em questão de troca de informação e obtenção de informação. Segundo, é fato que a rede potencializa o que as pesquisa já dizem do eleitor, que ele escolhe seus candidatos na troca de informações entra seus pares, familiares, amigos e essa influência na internet fica mais potencializada.

A internet não pode ser encarada como uma panacéia. Peguemos o caso do Joaquim Roriz, no Distrito Federal, por exemplo, que ao que parece será impugnado pelo Tribunal Superior Eleitoral devido à sua ficha suja. Ele criou uma rede social muito mais eficiente que a internet, dando lotes para pessoas da região metropolitana de Brasília e, por isso, lidera as pesquisas de opinião. É um acúmulo gerado ao longo do tempo. Não é uma mobilização social momentânea online que vai inverter esse tipo coronelismo ou populismo. Claro que esse acúmulo vai sofrendo impactos com o passar dos anos e a com a democratização, mas esses acordos políticos que fazem parte da sociedade não serão revertidos de uma hora para outra.

Dito isso, é fato que essas mobilizações em rede podem criar alternativas interessantes e ajudar as pessoas a esclarecerem dúvidas. Como o caso do projeto Politic Facts que gerava uma leitura sobre o que circulava na rede, spams, informações de marqueteiros etc. Fizeram um banco de dados onde eles filtravam as notícias, usando métodos jornalísticos, buscando esclarecimento, tentando dizer se uma coisa procedia ou não. O leitor podia separar o expediente eleitoral da verdade propriamente dita.

Um exemplo brasileiro seria o caso da candidata Dilma Rousseff. Circulou na web que ela era terrorista e tinha assassinado pessoas. Por outro lado, a sua campanha tenta vinculá-la ao Nelson Mandela, pacifista que teve que pegar em armas. São dois extremos que têm uma verdade bem mais complexa. A rede pode cumprir um papel interessante nesse sentido.

DIPLOMATIQUE –A internet também é um espaço que facilitou a difamação e a divulgação desses spams. Em quem confiar?

Esse caráter de banco de dados, como falamos no começo da entrevista, é importante: essa memória jamais esteve disponível. Sempre dependemos do que a imprensa publicava ou das campanhas. Essas informações não estavam facilmente disponíveis para o leitor mais crítico. A internet resolve esse problema. Por outro lado, isso passa por um envolvimento com a política menos emocional e mais racional. Hoje você pode recorrer à rede para se informar melhor. E com esse conjunto de informações, o eleitor pode decidir como quer votar, o que é um avanço. Mas isso faz mais parte da relação que as pessoas estabelecem com a política, e não com a internet.

E claro, a natureza e qualidade dessa informação produzida são importantes, a proporção de informação gerada na rede não corresponde em volume à qualidade. Mas esse cenário, comparado a outros que já tivemos, é sem dúvida muito melhor.

Uma das coisas mais interessantes que eu já li até agora na internet sobre as eleições foi do Xico Sá, que tuitou sobre o debate da semana passada. Se você entrar no YouTube e vir as edições produzidas pelos correligionários de Dilma e Serra, verá que eles tentam forçar a interpretação favorável para seu candidato. Posto isso, o Xico disse: “todos nós podemos ser como a TV Globo nas eleições de 1989”. O YouTube nos deu esse direito. A pergunta é: quem é que vai olhar tudo isso com algum distanciamento crítico e tentar esclarecer as pessoas? Boa pergunta.

DICAS DO SAVAZONI

Promessas de uma web bacana nas eleições

Destaco alguns trabalhos que vale a pena ficar atento nesta eleição, como forma de visualizar as melhores formas de usar a internet em um processo eleitoral. Na minha lista, só coloquei iniciativas da sociedade civil, porque acredito que é por meio delas que a comunicação efetivamente a serviço do cidadão se desenvolve no mundo das redes.

- Eleitor 2010 (Global Voices)

Esse projeto pretende organizar uma cobertura descentralizada e colaborativa em todo o país, para agregar informações sobre as campanhas por meio da ação de cidadãos engajados em produzir informações qualificadas. Muito bacana, mas ainda não decolou.

- Esfera e Comunidade do Transparência Hack Day

Ainda não há nenhum aplicativo específico desenvolvido, mas o pessoal tem trabalhado fortemente na organização de ações para unir política e desenvolvimento web com a finalidade de construir governos mais transparentes. Sairá coisa boa daí.

- Projeto Excelências (Transparência Brasil)

Banco de dados bem sucedido e consagrado, vencedor do Prêmio Esso, idealizado pelo excelente jornalista Marcelo Soares, o Excelências literalmente dá a ficha dos candidatos para que o eleitor possa escolher melhor.

Na minha opinião, o melhor projeto feito sobre eleições até agora é o PolitiFact, realizado nos Estados Unidos. Escrevi sobre ele um tempo atrás e acho que o que está ali ainda é válido. Não vi ninguém fazer nada parecido por aqui. Algumas iniciativas até começam a copiá-lo, mas não chegam nem perto quando comparamos interface e trabalho de apuração e checagem com o original americano.

10 de ago. de 2010

Homem precisa abandonar a Terra logo, diz Hawking [FOLHA]

Eis o destino humano na opinião do físico Stephen Hawking: abandonar a Terra nos próximos 100 anos ou se tornar uma espécie extinta.
"Eu vejo grandes perigos para a raça humana." A solução, diz, é abandonar o planeta e se espalhar pelo espaço.


Stefan Zaklin/Efe
Stephen Hawking durante a conferência "Por que devemos viajar ao espaço", nos EUA; ele é fã da exploração tripulada
Stephen Hawking durante a conferência "Por que devemos viajar ao espaço", nos EUA; ele é fã da exploração tripulada
Em entrevista ao site "Big Think", Hawking disse que existem muitas ameaças atualmente: guerras, a exploração excessiva dos recursos naturais e a quantidade exagerada de gente vivendo no planeta.
Além disso, há outro risco, diz. "Se alienígenas nos visitassem agora, o resultado seria muito parecido com o que aconteceu quando Colombo chegou à América: não foi nada bom para os povos nativos", afirmou ele.
"Esses alienígenas avançados talvez sejam nômades, procurando conquistar e colonizar quaisquer planetas que eles consigam alcançar."
Mas ele se diz otimista. "Fizemos muito progresso nos últimos cem anos. Se quisermos ir além dos próximos cem, o futuro é o espaço."
O problema são as distâncias: a estrela mais próxima da Terra, depois do Sol, está a mais de quatro anos-luz --as espaçonaves atuais levariam 50 mil anos para chegar lá.

6 de ago. de 2010

Infraestrutura, educação e política cultural [Revista CULT]

Superar o velho desenvolvimentismo e perguntar: que sociedade desejamos?


Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
Em 2002, as eleições presidenciais foram realizadas sob um clima de terror especulativo. Os mercados e seus porta-vozes projetaram cenários apavorantes para os quatro anos de governo Lula; o risco Brasil foi a 2.400 pontos-base, descolando da pontuação dos outros emergentes.
A transição, para surpresa de muitos e decepção de outros, foi feita com habilidade e prudência e não foram poucas as ocasiões em que o presidente Lula se esquivou do rótulo “esquerdista”. Tratou de escapar da dicotomia direita-esquerda para se abrigar na rubrica de líder sindical, perseguindo a imagem do líder popular negociador, disposto ao compromisso e à mediação.
Lula poderia protagonizar um personagem ausente no livro de Slavoj ŽiŽek sobre a atualidade do Manifesto Comunista. Esse livro trata dos enganos, desenganos, projetos e miopias da esquerda na era do capitalismo neoliberal “financeirizado” e globalizado. Um dos capítulos aborda as ambiguidades e desencontros da luta política dos subalternos, ao interpretar o enredo do filme inglês Os Virtuoses. O diretor levou à tela a narrativa da luta desesperada e inglória de um punhado de mineiros contra o fechamento da mina em que trabalhavam. O grupo de militantes participava também de uma banda, comandada por um maestro-mineiro que, no limiar da derrota política, proclamava: “Só a música importa”. A consigna era vista pelos mais duros como uma forma simbólica, mas ilusória e alienante, de reafirmar a solidariedade de classe.
A mina tinha perdido a sua função econômica, foi fechada. Nada mais restava para os companheiros desempregados senão a irrealidade da banda, na qual tentavam colocar em prática valores que tinham perdido a “autenticidade”, isto é, as condições de vida e de trabalho que lhe davam sentido. No epílogo da triste jornada, um dos personagens reafirma sua pertinência fundamental ao grupo perdedor, seja qual for a forma assumida pelas condições de vida: “Se já não há mais esperança, resta tão somente seguir os princípios”.
A banda econômica do governo Lula preferiu apostar no equilíbrio entre a esperança e os princípios, ainda que isso tenha lhe custado a increpação de praticar a Realpolitik, tentando se equilibrar – de forma incoerente para os principistas – entre as ações que buscavam a elevação dos padrões de vida dos mais pobres e as decisões de política econômica que propiciavam os ganhos parrudos aos senhores das finanças e seus acólitos. Essa façanha, dizem os críticos, foi executada em um ambiente internacional excepcionalmente favorável. Maquiavel, no entanto, já advertia que a virtù do príncipe só poderia frutificar se amparada pela fortuna.
Seja como for, acuado no início do primeiro mandato pelo terrorismo dos mercados, o metalúrgico tratou de não violar a partitura que registrava os acordes da prudência, sem abandonar o projeto de ampliação das políticas sociais. Intuitivo, Lula, o sindicalista, construiu uma visão pragmática do desenvolvimento nas sociedades modernas. Para ele, a política é, sobretudo, mediação entre dois sistemas: as necessidades e aspirações dos cidadãos e os interesses monetários que se realizam por meio do mercado. Lula parece supor que esse jogo crucial da modernidade deve reconhecer a legitimidade das ações egoístas, observados os limites impostos pelas políticas do Estado destinados a proteger os mais frágeis e dependentes.
O Estado e os direitos do cidadão
A democracia moderna – a dos direitos sociais e econômicos – nasceu e se desenvolveu contra as ilusões de harmonia nas relações econômicas impostas pelo mercado. Desde o século 19, as lutas sociais e políticas dos subalternos cuidaram de restringir os efeitos da acumulação privada da riqueza sobre a massa de não proprietários e dependentes. O sufrágio universal foi conseguido com muita briga entre o fim do século 19 e o começo do século 20. Os direitos econômicos e sociais são produtos da luta que transcorre entre o fim dos anos 1930 e o fim da Segunda Guerra Mundial.
O Estado promotor da inclusão social é uma construção jurídica e institucional erigida a ferro e fogo pelos subalternos. Depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo na Europa, mas também de forma atenuada nos Estados Unidos, as forças antifascistas impuseram o reconhecimento dos direitos do cidadão, desde o seu nascimento até a sua morte. Sacralizaram os direitos individuais para expurgar da vida social qualquer resquício de totalitarismo, e afirmaram os direitos econômicos e sociais para evitar que o desamparo das massas se transfigurasse na busca de soluções salvacionistas e decisionistas.
Na periferia do capitalismo, o desenvolvimentismo dos anos 1950 e 1960 imaginou que o crescimento econômico resolveria naturalmente os desequilíbrios sociais e econômicos herdados da sociedade agrário-exportadora e semicolonial. Engano. O desenvolvimentismo, a despeito do razoável sucesso da industrialização, não conseguiu reduzir as desigualdades. Na esteira de um processo de urbanização acelerada, o desenvolvimentismo transportou as iniquidades do campo para as cidades, onde, até hoje, as mazelas da desigualdade e da violência sobrevivem expostas nas periferias e nos morros.
Não é de espantar que nos países em desenvolvimento tais tendências tenham levado à corrosão das convicções democráticas e republicanas do povaréu. As políticas sociais das últimas décadas – tambem aquelas iniciadas pelo goveno Fernando Henrique – ainda não superaram, mas apenas bloquearam, a reprodução desimpedida da velha prática das camadas dominantes: a reiterada violação dos direitos sociais, ainda mal conquistados na letra da Constituição de 1988. Na sociedade brasileira, ainda é agudo o conflito entre as aspirações dos cidadãos a uma vida decente, segura, economicamente amparada, e as condições reais da existência material e moral da grande maioria.
Desenvolvimento: infraestrutura, educação e política cultural
Alguém me perguntou outro dia o que o Brasil pretende do seu desenvolvimento. Vou falar em primeiro lugar da infraestrutura. Estamos diante do binômio transporte/energia, que não utiliza racionalmente nossa constelação de recursos, e a distribuição espacial das atividades, cada vez mais descentralizada. O modelo da “automobilização” não tem futuro – nem mesmo com o carro elétrico – porque sua reprodução tornará ainda mais dolorosa a vida urbana, sobretudo nas megametrópoles. O modelo também é inviável para o transporte de longa distância.
Mais importante do que a infraestrutura é definir o destino que pretendemos dar ao sistema educacional brasileiro. Não se trata apenas de abastecer adequadamente o mercado de trabalho. É importante, sim, formar mais técnicos e engenheiros, carreiras desestimuladas pelo baixo crescimento das últimas décadas. Mas, antes de tudo, trata-se de conter a degradação que está ocorrendo em todos os níveis da educação no Brasil: a especialização precoce, em detrimento da formação cultural mais ampla e mais sólida, capaz de permitir a autonomia e a fruição da liberdade pelo cidadão brasileiro. Pois não se forma um bom engenheiro se o profissional não tem noção do país em que vive, do mundo em que sobrevive. Na verdade está-se produzindo hoje uma geração de idiots savants [sábios idiotas], especializados no seu ramo de atividade, mas sem a menor noção do mundo onde vivem. Basta acompanhar o que se lê na internet. É assustador. Isso demanda maior empenho, sobretudo das camadas “esclarecidas” da sociedade civil, na construção de uma política cultural compatível com a democracia de massas.
Assim, a infraestrutura, a educação formal e a política cultural são as três questões fundamentais. Temos de superar o velho desenvolvimentismo que admitia o avanço social e cultural como consequência natural do desenvolvimento econômico e nos perguntar: que sociedade desejamos? Os grandes autores brasileiros, intérpretes do Brasil, perscrutaram a história para responder à questão de quem somos nós, os brasileiros. É hora de perguntar: que sociedade queremos?
Quando me refiro a uma política cultural, estou falando de uma integração do indivíduo e dos grupos sociais ao mundo contemporâneo; saber, afinal de contas, quais são os valores que nós queremos preservar. Imagino que sejam os mesmos que a modernidade colocou como um desafio para a nossa ação política: a liberdade, a igualdade e a compreensão.O que vemos hoje, desgraçadamente, no mundo inteiro e no Brasil em particular, é um processo de obscurecimento, e nesse aspecto tem enorme importância o que nós queremos dos meios de comunicação de massa. Hoje em dia há um grande debate em torno da liberdade de expressão. A grande mídia, sob a consigna da liberdade de expressão, trata de impedir que se desenvolva o verdadeiro debate sobre o Brasil ou sobre os temas que afligem a humanidade. Contra esse controle, temos de lutar pela diversidade. Promover a diversidade é uma obrigação das políticas públicas: não deixar que o poder da informação, concentrado em poucas empresas, se transforme em censura da opinião alheia. A internet ainda é uma caixa de ressonância da grande imprensa: os blogs e quejandos, em sua maioria, reproduzem o que a grande imprensa diz, na forma e no conteúdo, porque estão com a consciência crítica danificada.
O projeto da liberdade não pode, como dizia Adorno, se separar da questão da compreensão, do entendimento, da crítica e da capacidade de formular projetos. E isso está bloqueado hoje, no Brasil, por causa da banalização da vida e da celebração das celebridades. Tudo está sendo feito para que a sociedade se transforme numa massa amorfa que não tem papel nenhum a desempenhar na projeção de seu próprio destino.