É, no entanto, uma possibilidade que não foi dada aos homens, e Deus não parecer querer que assim aconteça".
Johann Wolfgang von Goethe, in 'Máximas e Reflexões'
Na boa tradição do gótico inglês do século 18, o escritor Neil Gaiman situa o cenário de "Coraline" em um casarão isolado e imponente no alto de uma colina. Lá vive, com o pai e a mãe, a heroína de sua "graphic novel".
Entediada com as férias escolares, Coraline descobre uma porta na sala de visitas que dá para uma parede murada. Ela se abrirá --e somente a ela-- para um mundo duplicado, onde reside uma versão "do mal" de seus pais: olhos costurados com botões, unhas enormes e aparência cadavérica.
Como o duplo é uma das imagens mais recorrentes na literatura romântica, a primeira pergunta ao escritor inglês, que falou à Folha, recai sobre a influência desse movimento em sua obra.
"Não sei! Hesito em rotular minhas obras porque essa não é a tarefa do artista. Sua tarefa é criar --cabe aos outros rotular! Quando a gente acredita em rótulos, acredita que existem regras, naquilo que se deve ou não fazer. Algumas vezes me dizem que sou um neoclássico ou um pós-moderno, mas são apenas formas que encontram para descrever o que faço."
Persistente, o entrevistador tenta mais uma vez. "Coraline" lida com um mundo onírico, vetado aos adultos. Isso tem a ver com o surrealismo? "Amo os surrealistas; sempre amei!"
Ufa!
E Gaiman prossegue: "Quando era um garotinho, adorava os quadros de Dalí, e, mais tarde, descobriria André Breton [francês, autor do "Manifesto Surrealista", de 1924, a bíblia do movimento]. Há momentos em 'Coraline' que são puro surrealismo, em que a escrita se aproxima de um "estado infantil".
É por isso que os sonhos são tão importantes em sua obra? (Sua série clássica,"Sandman", é protagonizada justamente por Morfeu, a personificação dos sonhos).
"Sim, porque os usamos para representar tantas coisas... Mas, basicamente, duas: loucura, selvageria e também aspiração _aquilo que gostaríamos de ser. Nos sentimos fracassados na vida real se não conseguimos preencher nossos sonhos. Se conversarmos com alguém cuja vida foi arruinada, lhe dirá: 'Eu costumava ter sonhos, mas deixei de tê-los'!"
Lembra-se de seus sonhos? "Hoje, não! Mas era muito bom nisso quando escrevia 'Sandman'."
É de imaginar, então, que o autor inglês costume ler Freud...
"Não, embora pareça. Li um pouco no final da adolescência e aos vinte e poucos anos, quando pesquisava para 'Sandman'."
Mas ele é importante para o senhor?
"O que resume Freud para mim está no comentário de Sandman. Na 'Casa de Bonecas' [livro da série 'Sandman'], Morfeu e Rose [Walker] estão voando lado a lado quando ela lhe diz: 'Você sabe o que Freud disse sobre o significado de voar, nos sonhos? Disse que, de fato, você está sonhando em fazer sexo'. E Morfeu pergunta: 'Ok, mas então qual é o significado, em seu sonho, de fazer sexo?'. E ela não tem resposta para isso."
Bernardo Gutiérrez - 4.jul.2008/Folhapress | ||
O escritor inglês Neil Gaiman, que disse tentar fugir dos rótulos e ser amante do surrealismo, em visita ao Brasil em 2008 |
BRASIL!
Gaiman sabe do apreço que desfruta no Brasil. Quando esteve na Flip, em 2008, lembra que "apareceram 1.600 pessoas na minha sessão de autógrafos. Em Nova York, Chicago e Los Angeles, não reúno mais que 300!"
E como explica esse fenômeno? Não será porque nos EUA as HQs sejam parte da cultura há muito tempo?
"Não sei explicar todo o fenômeno, e por isso ele me fascina. Os leitores brasileiros me parecem incrivelmente espertos, mas há uma série de coisas trabalhando contra. Uma delas é que o sucesso das HQs no Brasil começou no momento em que o Ocidente também o descobria. Isso tornou os livros caros para o padrão daí."
Mas Gaiman tem outra explicação, de ordem cultural.
"Também tive a impressão de que no Brasil muito poucas pessoas falam inglês. Isso quer dizer que elas ficaram por um tempo à mercê da indústria editorial e da situação da economia."
GRANDES NOMES
Qual a diferença entre HQs americanas e europeias? "Se você me fizesse essa pergunta 25 anos atrás, poderia facilmente lhe dar uma resposta. Mas hoje as coisas mudaram --e estão mudando."
Todos influenciam todos?
"Exatamente. De um lado a outro do planeta, todo mundo lê todo mundo."
E quais são os escritores e artistas mais importantes no cenário atual?
"Os mais importantes artistas são também os melhores escritores. São os responsáveis pelo que se fez de melhor nos últimos 15 anos. A adaptação que Robert Crumb, que começou no underground, fez para o 'Gênesis' é uma obra-prima."
Alguém mais? "Art Spiegelman, Chris Ware Linda Barry [todos americanos]..."
A internet mudou o gênero? "Mudou tudo! Porque você sabe muito rapidamente o que o outro está fazendo. E, com o iPad, está ficando cada vez mais fácil ler quadrinhos. O jeito de fazer também mudou, e isso me apaixona."
Em que trabalha agora?
"Em um livro de não-ficção sobre mitologia chinesa, a história de um rei macaco. Em também em um episódio para a TV inglesa."
E conclui, enfático: "E transmita todo o meu amor ao povo brasileiro".