22 de dez. de 2010

Neil Gaiman diz tentar fugir de rótulos e declara amor ao surrealismo

da Folha.com
MARCOS FLAMÍNIO PERES

Na boa tradição do gótico inglês do século 18, o escritor Neil Gaiman situa o cenário de "Coraline" em um casarão isolado e imponente no alto de uma colina. Lá vive, com o pai e a mãe, a heroína de sua "graphic novel".

Entediada com as férias escolares, Coraline descobre uma porta na sala de visitas que dá para uma parede murada. Ela se abrirá --e somente a ela-- para um mundo duplicado, onde reside uma versão "do mal" de seus pais: olhos costurados com botões, unhas enormes e aparência cadavérica.

Como o duplo é uma das imagens mais recorrentes na literatura romântica, a primeira pergunta ao escritor inglês, que falou à Folha, recai sobre a influência desse movimento em sua obra.

"Não sei! Hesito em rotular minhas obras porque essa não é a tarefa do artista. Sua tarefa é criar --cabe aos outros rotular! Quando a gente acredita em rótulos, acredita que existem regras, naquilo que se deve ou não fazer. Algumas vezes me dizem que sou um neoclássico ou um pós-moderno, mas são apenas formas que encontram para descrever o que faço."

Persistente, o entrevistador tenta mais uma vez. "Coraline" lida com um mundo onírico, vetado aos adultos. Isso tem a ver com o surrealismo? "Amo os surrealistas; sempre amei!"

Ufa!

E Gaiman prossegue: "Quando era um garotinho, adorava os quadros de Dalí, e, mais tarde, descobriria André Breton [francês, autor do "Manifesto Surrealista", de 1924, a bíblia do movimento]. Há momentos em 'Coraline' que são puro surrealismo, em que a escrita se aproxima de um "estado infantil".

É por isso que os sonhos são tão importantes em sua obra? (Sua série clássica,"Sandman", é protagonizada justamente por Morfeu, a personificação dos sonhos).

"Sim, porque os usamos para representar tantas coisas... Mas, basicamente, duas: loucura, selvageria e também aspiração _aquilo que gostaríamos de ser. Nos sentimos fracassados na vida real se não conseguimos preencher nossos sonhos. Se conversarmos com alguém cuja vida foi arruinada, lhe dirá: 'Eu costumava ter sonhos, mas deixei de tê-los'!"

Lembra-se de seus sonhos? "Hoje, não! Mas era muito bom nisso quando escrevia 'Sandman'."

É de imaginar, então, que o autor inglês costume ler Freud...

"Não, embora pareça. Li um pouco no final da adolescência e aos vinte e poucos anos, quando pesquisava para 'Sandman'."

Mas ele é importante para o senhor?

"O que resume Freud para mim está no comentário de Sandman. Na 'Casa de Bonecas' [livro da série 'Sandman'], Morfeu e Rose [Walker] estão voando lado a lado quando ela lhe diz: 'Você sabe o que Freud disse sobre o significado de voar, nos sonhos? Disse que, de fato, você está sonhando em fazer sexo'. E Morfeu pergunta: 'Ok, mas então qual é o significado, em seu sonho, de fazer sexo?'. E ela não tem resposta para isso."

Bernardo Gutiérrez - 4.jul.2008/Folhapress
O escritor inglês Neil Gaiman em visita ao Brasil em 2008
O escritor inglês Neil Gaiman, que disse tentar fugir dos rótulos e ser amante do surrealismo, em visita ao Brasil em 2008

BRASIL!

Gaiman sabe do apreço que desfruta no Brasil. Quando esteve na Flip, em 2008, lembra que "apareceram 1.600 pessoas na minha sessão de autógrafos. Em Nova York, Chicago e Los Angeles, não reúno mais que 300!"

E como explica esse fenômeno? Não será porque nos EUA as HQs sejam parte da cultura há muito tempo?

"Não sei explicar todo o fenômeno, e por isso ele me fascina. Os leitores brasileiros me parecem incrivelmente espertos, mas há uma série de coisas trabalhando contra. Uma delas é que o sucesso das HQs no Brasil começou no momento em que o Ocidente também o descobria. Isso tornou os livros caros para o padrão daí."

Mas Gaiman tem outra explicação, de ordem cultural.

"Também tive a impressão de que no Brasil muito poucas pessoas falam inglês. Isso quer dizer que elas ficaram por um tempo à mercê da indústria editorial e da situação da economia."

GRANDES NOMES

Qual a diferença entre HQs americanas e europeias? "Se você me fizesse essa pergunta 25 anos atrás, poderia facilmente lhe dar uma resposta. Mas hoje as coisas mudaram --e estão mudando."

Todos influenciam todos?

"Exatamente. De um lado a outro do planeta, todo mundo lê todo mundo."

E quais são os escritores e artistas mais importantes no cenário atual?

"Os mais importantes artistas são também os melhores escritores. São os responsáveis pelo que se fez de melhor nos últimos 15 anos. A adaptação que Robert Crumb, que começou no underground, fez para o 'Gênesis' é uma obra-prima."

Alguém mais? "Art Spiegelman, Chris Ware Linda Barry [todos americanos]..."

A internet mudou o gênero? "Mudou tudo! Porque você sabe muito rapidamente o que o outro está fazendo. E, com o iPad, está ficando cada vez mais fácil ler quadrinhos. O jeito de fazer também mudou, e isso me apaixona."

Em que trabalha agora?

"Em um livro de não-ficção sobre mitologia chinesa, a história de um rei macaco. Em também em um episódio para a TV inglesa."

E conclui, enfático: "E transmita todo o meu amor ao povo brasileiro".

Nenhum comentário:

Postar um comentário