retirado do Le Monde Diplomatique Brasil
por Benjamin Fernandez
Os resultados da eleição presidencial haitiana de 28 de novembro de 2010 ainda não são conhecidos. O Conselho Eleitoral provisório decidiu então marcar o segundo turno para 16 de janeiro de 2011, mas o pleito foi adiado novamente sem data definida. Na edição de janeiro, o Le Monde Diplomatique Brasil dedica dois artigos à crise política, humanitária e social que se agravam na ilha (“Eleições sem esperança de renovação”, por Alexander Main, e “Entre Deus e as ONGs”, de Christophe Wargny). Enquanto o número de vítimas da epidemia de cólera aumenta, intensifica-se a cólera da população frente à Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) – acusada de ter acidentalmente introduzido a bactéria na ilha.
Duas investigações epidemiológicas1 internacionais confirmaram que a fonte da epidemia provinha do campo nepalês da Minustah, próximo a Mirebalais, no centro do país. Os resíduos produzidos no campo infectado foram lançados – “em quantidades fenomenais”, segundo o primeiro relatório – em um afluente do Artibonite, o rio mais importante do país.
A epidemia já causou, oficialmente, mais de três mil mortes e afetou mais de 52 mil pessoas. Mas, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS)2, o número de casos poderia chegar a 70 mil, com a doença atingindo cerca de 400 mil pessoas ao longo dos próximos 12 meses. As autoridades sanitárias e as organizações não-governamentais (ONG) declaram-se impotentes para conter o contágio.
Essas revelações abalaram a credibilidade da força internacional dirigida pelo Brasil, cuja eficácia já foi posta em questão. Enquanto a incerteza sobre o resultado das urnas e as suspeitas de fraude provoca uma nova onda de violência na capital, Porto Príncipe, e quase um milhão de pessoas continuam vivendo em acampamentos insalubres dominados pelas gangues, a ação da Organização das Nações Unidas (ONU) é vista mais uma vez como um fracasso – fracasso aliás plenamente reconhecido por Ricardo Seitenfus, representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti desde 2008: “O Haiti é a prova do fracasso da ajuda internacional”, afirmou ele em uma entrevista ao jornal suíço Le Tempsde 20 de dezembro. Imediatamente após essas declarações, o alto funcionário foi chamado à sede da organização.
A Minustah é a quinta missão de manutenção da paz organizada pela ONU, que já conta 17 anos de presença no país3. Ela seguiu-se à intervenção estadunidense que derrubou o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide: seu mandato de “restauração da democracia” não deixou de suscitar dúvidas entre a população. No lançamento da missão, em junho de 2004, o secretário das Nações Unidas, Kofi Annan, não escondia suas inquietudes: “Desta vez, tratemos de conseguir”, disse.
Mesmo assim são poucos os que ainda reclamam abertamente a saída dos capacetes azuis. Os corpos especiais da ONU representam a frágil, porém derradeira, esperança de segurança em um país devastado e entregue à instabilidade política permanente, um país que já não dispõe de nenhuma estrutura de proteção civil eficaz. Mas eles enfrentam sérias dificuldades de organização: as forças reúnem mais de 7.800 militares, 2.136 policiais (Polícia das Nações Unidas – Unpol) e mais de dois mil civis, originários de não menos que 41 nações (principalmente do Sul), e a coordenação logística revelou-se de uma complexidade insuperável para o comando brasileiro, ainda inexperiente nesse tipo de missão.
Pior: a força multinacional passou por vários escândalos. Dois anos após o início da missão, o chefe da polícia haitiana, Mario Andresol, foi obrigado a reconhecer a ligação das gangues da favela de Cité-Soleil com os serviços de polícia e o contingente de capacetes azuis jordanianos4. Em novembro de 2007, 108 soldados do Sri Lanka foram repatriados por recorrer à prostituição de menores5. No mês seguinte, uma investigação revelou que empregados da ONU eram culpados de má gestão, fraudes e desvios que chegavam a 610 milhões de dólares6. Enfim, a morte do ex-chefe militar da missão, o general brasileiro Urano Bacellar, em seu quarto de hotel em Porto Príncipe, no dia 6 de janeiro de 2006, continua sendo um dos eventos mais problemáticos envolvendo a missão.
Mesmo no quesito segurança, o balanço da Minustah decepciona. Numa situação de guerrilha urbana, nem os caros equipamentos nem as estratégias militares da missão mostraram-se adaptados para enfrentar gangues que circulam e escondem-se tranquilamente nas favelas da capital. As tropas sempre recebem tiros nessas áreas e as réplicas dos capacetes azuis fazem vítimas na população. Aliás, os métodos agressivos da polícia já foram apontados pela Anistia Internacional, que acusa a Minustah de apoiá-los em atos de violação sistemática dos direitos humanos, principalmente nos bairros desfavorecidos7. Em janeiro de 2006, a população ficou consternada depois que os capacetes azuis abriram fogo sobre haitianos que protestavam, na fronteira dominicana, contra a morte de 25 haitianos encontrados asfixiados no país vizinho.
Todas essas muitas questões acenderam a cólera da população haitiana, que vê somar-se a suas provações uma epidemia furiosa. Cansada, ela pergunta quando os soldados irão embora.
A especificidade do contexto político, social, histórico e geográfico faz da Minustah uma missão das mais delicadas; o exército estadunidense sabe muito bem disso, tendo cercado as favelas da capital haitiana na intervenção de 2004 para impedir um levante popular em favor de Aristide, antes de deixar o Brasil encarregar-se de gerir a situação.
É surpreendente que os Estados Unidos tenham aceitado confiar ao Brasil a sequência das operações, no quadro de uma estratégia que eles próprios fixaram. Ainda mais quando Brasília se coloca como grande rival no papel de garantir a estabilidade regional, papel que Washington reserva exclusivamente para si há quase dois séculos8. Há quem avalie que o sucesso da missão é um objetivo secundário... e que a Casa Branca não ficaria chateada em ver seu “parceiro” brasileiro engolido pelo caos haitiano que o gigante do Norte deixou instalar-se.
Embora os dois países exibam uma aliança perfeita, a tomada da direção das operações realizou-se em um contexto de desconfiança recíproca, identificada nas comunicações diplomáticas reveladas pelo WikiLeaks: “O Brasil não deve ser considerado como estando do nosso lado”, resume uma carta diplomática estadunidense9.
Para o Brasil, é uma questão de porte. O país tem intenção de se afirmar como um ator incontornável no cenário internacional, não apenas no plano econômico, mas também diplomático, militar e humanitário. Seu objetivo? Colocar-se como o mais sério candidato do subcontinente americano ao assento permanente no Conselho de Segurança ampliado da ONU.
Nessas condições, o Haiti – laboratório do “humanitarismo” contemporâneo e objeto de todos cálculos diplomáticos – é dilacerado por questões que vão muito além dele e contrariam seus próprios interesses. “No cenário internacional, o Haiti paga essencialmente sua grande proximidade com os Estados Unidos”, avalia Seitenfus, que não para por aí: “Querem fazer do Haiti um país capitalista, uma plataforma de exportação para o mercado norte-americano, o que é absurdo. (…) Não se resolve nada, agrava-se a situação.” E o representante lança este apelo à comunidade internacional: “Chega de brincar com o Haiti.”